Hemofilia em pauta: do diagnóstico à qualidade de vida
Ficar alerta e não negligenciar sinais agiliza o tratamento precoce, mudando para melhor a rotina de quem convive com a doença
Cortes, mesmo pequenos, que não cicatrizam, sangramentos espontâneos e inexplicáveis manchas roxas pelo corpo – no Brasil, cerca de 14 mil pessoas lidam com os desafios da hemofilia, doença hemorrágica em que o sangue não coagula adequadamente, causando derramamentos internos ou externos difíceis de serem estancados. Isso ocorre pela ausência ou escassez de proteínas ligadas ao processo de coagulação. “Quando falta o fator VIII, trata-se de hemofilia A, que compõe a maioria dos casos. Já a deficiência do fator XIX é responsável pelo tipo B”, explica a hematologista Margareth Ozelo, diretora da Divisão de Hematologia do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Na visão da especialista, datas como 4 de janeiro, Dia Nacional da Pessoa com Hemofilia, ou 17 de abril, Dia Mundial da Hemofilia, abrem espaço para ações de conscientização sobre o problema. “Campanhas como essas são uma oportunidade de informar e chamar atenção para a necessidade de investigar tendências a sangramentos que comprometem a qualidade de vida”, justifica a médica. Também são momentos que mobilizam associações de pacientes na divulgação de terapias e em reivindicações por acesso às formas mais inovadoras de tratamento.
A hemofilia é uma doença hereditária predominantemente masculina. Como os genes que codificam tanto o fator VIII quanto o IX estão no cromossomo X, as mulheres são portadoras da mutação responsável pelo aparecimento do problema. Para que a condição se manifeste nelas, a alteração precisa estar presente nos dois X. Nos meninos, como têm um único cromossomo X, herdado da mãe, se este tiver a mutação, a doença se apresenta.
“Mais de 99% dos casos de hemofilia são de homens, embora seja possível que aconteça também em mulheres. Algumas portadoras do gene mutante podem até ter uma tendência a sangramentos, mas em quadros menos críticos”, observa Margareth. Mais um motivo, diz ela, para que se disseminem informações sobre hemofilia, a fim de evitar que sinais da condição sejam negligenciados, atrasando tratamentos. “Numa família com história da doença, é mais fácil fazer o reconhecimento”, pondera. Só que 30% dos diagnósticos são feitos em pessoas sem ocorrência prévia entre os parentes. Ou seja, é uma doença hereditária com alto índice de casos de mutação nova. “É importante reforçar isto: não ter antecedente não exclui essa possibilidade”, avisa a médica.
Atenção aos sintomas
Sangramentos prolongados, por vezes espontâneos, hematomas frequentes e demora na cicatrização de qualquer machucado servem de alerta. Juntas inchadas e quentes indicam extravasamentos internos. Com relatos desses sintomas, a busca pelo diagnóstico se inicia com um coagulograma ou prova de coagulação. “É um teste simples, de fácil acesso inclusive no sistema público”, diz Margareth. Se o resultado trouxer alterações, a avaliação prossegue com um exame de dosagem dos fatores de coagulação, disponível na rede de hemocentros e hemonúcleos espalhados pelo Brasil.
A gravidade da hemofilia é determinada pela quantidade de fator VIII ou IX produzido. “Se for menos de 1% do esperado, é classificada como grave. Se ficar entre 1% e 5%, moderada. Níveis de 5% a 40% indicam formas leves. Acima de 40% é considerado dentro da normalidade”, descreve a especialista da Unicamp.
Pessoas com quadros mais leves podem passar a vida toda sem saber que têm a mutação no gene ou só descobrem a doença quando surge um sangramento exagerado em um tratamento dentário, passam por um trauma mais significativo ou então ao realizarem teste de coagulação antes de uma cirurgia, por exemplo.
“O tipo mais grave da doença, porém, é o mais frequente. São casos percebidos já na primeira infância, quando a criança começa a se movimentar, andar, tropeçar, e aparecem manchas roxas recorrentes, cortes que não param de sangrar, hematomas incomuns quando tomam vacina”, diz Margareth.
Como os sangramentos acontecem também nas estruturas musculoesqueléticas, sobretudo nas juntas, se a hemofilia não for tratada adequadamente desencadeia inflamações e perda de cartilagem, comprometendo a articulação e levando a sequelas debilitantes, como dificuldade para andar ou movimentar os braços. Daí por que é preciso intervir o quanto antes para controlar a doença.
A base do tratamento
Repor o fator de coagulação faltante ou escasso é o pilar do manejo da hemofilia. O tratamento profilático, ou seja, administrado sem ter que esperar o sangramento acontecer, foi implementado no Brasil em 2011. Como a terapêutica é feita por meio de infusão na veia, dá para imaginar o tamanho da dificuldade no dia a dia, sobretudo quando os pacientes são bebês. “Aplicação venosa, várias vezes por semana e por toda a vida… É um grande desafio”, comenta Margareth Ozelo.
Com o avanço da tecnologia surgiram os produtos recombinantes, manipulados em laboratório, que não apenas eliminam o risco de contaminação como propiciam um tempo de duração maior do fator na circulação. “Assim, uma infusão apenas na semana já consegue proteger dos sangramentos, facilitando a rotina”, afirma a expert.
Outra dificuldade enfrentada por cerca de 30% dos pacientes com hemofilia A é o desenvolvimento de uma reação do organismo ao fator de coagulação, atrapalhando a eficácia da terapia. “Quando a criança recebe o concentrado, o sistema pode reconhecer como uma proteína estranha, gerando uma complicação chamada inibidores, em que anticorpos atacam os fatores repostos e eles deixam de funcionar”, explica a hematologista.
Até muito recentemente, o único jeito de atender pacientes que desenvolviam os inibidores era com imunotolerância, um complexo protocolo em que recebiam altas doses do fator na veia por períodos que variavam de alguns meses a três anos.
Produtos inovadores melhoram perspectivas
Hoje inovações tecnológicas na área propiciam novas modalidades de tratamento, a exemplo do anticorpo monoclonal emicizumabe, aprovado para uso no Brasil em 2018. “Ele não repõe, mas substitui a função do fator VIII e consegue ativar a coagulação. O produto foi revolucionário para a hemofilia A”, destaca Margareth Ozelo. A grande vantagem é que funciona também para quem desenvolveu inibidores e passou a não responder à reposição. Isso sem contar que a aplicação é subcutânea, feita uma vez por semana ou até por mês, dependendo do caso, possibilitando uma melhora significativa na qualidade de vida.
Liderando pesquisas ligadas à terapia gênica na Unicamp, a médica destaca que a instituição conta com o maior número de pessoas com hemofilia no mundo em estudo sobre essa modalidade. “A ideia se baseia em inserir uma sequência de DNA do fator usando um vetor, um vírus modificado, por exemplo. Esse material genético vai atuar diretamente em células-alvo. No caso da hemofilia, nas do fígado”, explica. Introduzida nos hepatócitos, numa única infusão, a sequência induz a produção do fator VIII ou XIX – uma nova e promissora frente de proteção contra os sangramentos.
Programa brasileiro é referência
Uma rede de hemocentros é responsável pela distribuição do tratamento para hemofilia no país, todo ele oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O Programa Nacional de Coagulopatias Hereditárias faz um registro dos pacientes, que recebem as terapias de acordo com a recomendação para cada caso.
Nos centros de referência, equipes multidisciplinares, indispensáveis para os cuidados exigidos pela doença, são formadas por hematologistas, ortopedistas, fisioterapeutas, dentistas e psicólogos. “Profissionais de enfermagem são cruciais no processo, para treinar as famílias a fazerem a aplicação em casa mesmo em bebês e crianças muito pequenas”, ressalta Margareth.
Uma das reivindicações de associações de pacientes é a ampliação do acesso às terapias mais avançadas. “Nos países desenvolvidos, crianças começam a receber a subcutânea desde o nascimento, evitando dificuldades no acesso venoso. Essa alternativa ainda não foi liberada por aqui”, exemplifica a médica. “Para hemofilia B, já existe tecnologia avançada de fator IX de longa duração, e estamos anos atrasados para receber esses produtos”, completa.
No que diz respeito a terapias gênicas, hoje ela é ofertada aos brasileiros com hemofilia basicamente no âmbito de pesquisas clínicas. “Não acredito que essa modalidade vai ser para todos, mas acho importante liberar as diferentes alternativas terapêuticas, possibilitando a tomada de decisão compartilhada com o paciente sobre a mais adequada para cada caso”, defende Margareth Ozelo. “O tratamento da hemofilia melhorou muito, e o Brasil é um exemplo disso. Precisamos dar os próximos passos, garantido acesso às inovações, sobretudo para os pequenos, para evitar sequelas futuras”, conclui.
29 de janeiro de 2025
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