Quando a gordura se acumula nos lugares errados: o que são as lipodistrofias?
Ainda pouco conhecida, a condição pode afetar o metabolismo e a saúde cardiovascular, entre outras complicações de saúde
Embora a lipodistrofia seja classificada como uma doença rara, a expressão “é raro, mas acontece muito” parece ilustrar bem o cenário atual no Brasil, no qual especialistas apontam uma prevalência significativa, mas ainda não totalmente dimensionada, de casos, principalmente das formas genéticas da doença.
“Estamos trabalhando há alguns anos para levantar dados concretos sobre a prevalência dessas lipodistrofias no país. Sabemos que se trata de uma condição de origem genética, causada por mutações que levam a alterações importantes no desenvolvimento e na função do tecido adiposo”, explica o endocrinologista Renan Montenegro Jr., professor associado da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC) e uma das principais referências na área.
Segundo ele, há fortes indícios de que o Brasil, sobretudo na região Nordeste, possui uma frequência maior de casos do que outras partes do mundo: “um fenômeno possivelmente ligado a um ‘efeito fundador’ da colonização portuguesa, com influência genética que favoreceria essa maior incidência”.
Formas genéticas e adquiridas: o que são e como se manifestam
A lipodistrofia se manifesta de duas maneiras principais: formas genéticas, também chamadas de congênitas (que acontecem já ao nascimento) ou familiares, e formas adquiridas.
Entre as formas genéticas, a doença pode ser:
- Generalizada: quando há ausência quase total de tecido adiposo no corpo, tanto na camada subcutânea quanto na visceral.
- Parcial: quando há redução ou ausência acentuada de gordura em determinadas partes do corpo.
A ilustração acima retrata os diferentes fenótipos (ou seja, as aparências físicas) associados às lipodistrofias. Da esquerda para a direita, vemos a forma generalizada congênita e, na sequência, formas parciais familiares, cada uma com características específicas de redistribuição de gordura corporal.
Nas formas generalizadas, a pessoa nasce com uma incapacidade de formar células adiposas adequadamente, resultando na ausência de gordura tanto nas camadas superficiais quanto nas mais profundas, como a gordura visceral. Já nas formas parciais, ocorre a perda de gordura em segmentos específicos, geralmente com redução acentuada na parte inferior do corpo, como pernas e quadris, e um acúmulo compensatório na parte superior e no abdômen.
Essa distribuição atípica confere ao paciente uma aparência característica, que muitas vezes se assemelha à síndrome metabólica: circunferência abdominal aumentada, alterações metabólicas e risco cardiovascular elevado.
Formas adquiridas e o impacto do HIV
Além das causas genéticas, existem também as formas adquiridas de lipodistrofia, classificadas da mesma maneira:
- Generalizadas: raras e associadas, por exemplo, a doenças autoimunes.
- Parciais: mais comuns, principalmente associadas à infecção pelo HIV/AIDS.
“A lipodistrofia adquirida parcial associada ao HIV é, sem dúvida, a mais prevalente”, explica Montenegro. Estima-se que até 50% das pessoas que vivem com HIV ou AIDS desenvolvam algum grau de lipodistrofia. O quadro se caracteriza por uma redução acentuada da gordura periférica, especialmente no rosto e nas extremidades, acompanhada de um acúmulo de gordura no abdômen.
“Por isso, sempre que um paciente apresenta sinais de lipodistrofia, é fundamental descartar a infecção pelo HIV, dada a alta prevalência dessa associação”, orienta o especialista.
O papel do tecido adiposo e as complicações metabólicas
Engana-se quem pensa que a lipodistrofia é apenas um problema estético. O tecido adiposo é essencial para o equilíbrio metabólico. Ele atua como reservatório seguro de energia: quando ingerimos mais calorias do que gastamos, essa energia é armazenada na gordura subcutânea.
Mas, nos pacientes com lipodistrofia, a falta ou redução desse tecido faz com que a gordura seja desviada para locais inadequados, como:
- Fígado: levando à esteatose hepática (doença hepática gordurosa metabólica).
- Pâncreas: aumentando o risco de diabetes.
- Músculos e coração: favorecendo doenças cardiovasculares.
“Essa gordura ectópica é tóxica e desencadeia uma série de complicações graves, como diabetes precoce, doenças hepáticas e cardiovasculares”, alerta Montenegro.
Mais que estética: risco de síndrome metabólica grave
A lipodistrofia, principalmente nas formas parciais adquiridas, apresenta manifestações que se assemelham à síndrome metabólica clássica, que é aquela associada à obesidade abdominal, hipertensão, colesterol alterado e risco cardiovascular.
Contudo, no caso da lipodistrofia, os efeitos são ainda mais intensos, justamente pela ausência da gordura periférica, que cumpre papel protetor. “É uma síndrome metabólica grave, com risco elevado de doenças cardiovasculares, hepatopatias e complicações metabólicas”, explica Montenegro.
O desafio do diagnóstico e os sinais de alerta
O diagnóstico da lipodistrofia ainda é um grande desafio. Muitas vezes, os sinais são confundidos com outras condições, e o desconhecimento da doença impede o encaminhamento correto. “Queremos que os profissionais de saúde tenham maior familiaridade com essa condição, para que consigam identificar e conduzir os casos de forma adequada”, afirma Montenegro.
O sinal mais comum de alerta é a desproporção na distribuição da gordura: redução acentuada da gordura nos membros inferiores, isto é, sem que a pessoa esteja desnutrida, tenha iniciado uma dieta restritiva ou praticado exercício físico em excesso, por exemplo. É importante ficar atento se esse sinal estiver acompanhado de:
- Aumento da circunferência abdominal.
- Diagnóstico precoce de diabetes não insulinodependente (que aparece com o diabetes tipo 2), nas primeiras décadas de vida (antes dos 40 anos), principalmente se não tiver sobrepeso ou obesidade.
- Triglicerídeos muito elevados ou HDL (colesterol bom) muito baixo.
- Pressão arterial alta.
- Doença hepática inexplicada, como esteatose ou sinais de fibrose.
Quando esse conjunto de manifestações está presente, principalmente em pessoas com peso corporal adequado, é fundamental buscar avaliação especializada com um endocrinologista.
Tratamento: controlar as manifestações e prevenir complicações
Atualmente, não há cura para as formas genéticas de lipodistrofia. O tratamento é focado no controle das manifestações metabólicas e na prevenção de complicações. Entre as abordagens terapêuticas, estão:
- Medicações para resistência à insulina.
- Tratamento da hiperglicemia e dislipidemia.
- Mudanças no estilo de vida: dieta equilibrada e prática de exercícios físicos.
- Terapias específicas, como a leptina recombinante (metreleptina), já validada mundialmente e aprovada no Brasil, mas não disponível no Sistema Único de Saúde (SUS).
“A leptina é um hormônio essencial para regular o apetite e o metabolismo, mas esses pacientes produzem quantidades muito baixas. A reposição melhora o controle glicêmico, o perfil lipídico e reduz o risco de complicações hepáticas e cardíacas”, explica Montenegro.
Outras medicações mais potentes para o controle de triglicerídeos também têm se mostrado eficazes e já estão disponíveis no Brasil, mas ainda são de acesso limitado. Um exemplo é o volanesorsena, um inibidor de apoCIII, proteína que regula o metabolismo dos triglicerídeos.
Rede Brazlipo e conscientização mundial
Para melhorar a identificação dos casos e avançar nas pesquisas, foi criada a Rede Brazlipo (www.brazlipo.org), uma iniciativa que conecta centros de referência no Brasil, promove a formação de profissionais, orienta colegas e mantém um registro nacional de casos. “A ideia é reunir informações clínicas, sociais e geográficas sobre a doença para subsidiar políticas públicas e garantir um cuidado adequado a esses pacientes, que são de altíssimo risco metabólico”, explica Montenegro, que é o coordenador da Rede Brazlipo.
E, para ampliar a conscientização sobre a doença, existe o Dia Mundial das Lipodistrofias, celebrado em 31 de março. A data busca chamar atenção para a importância do diagnóstico precoce e para a necessidade de políticas públicas que garantam acesso ao tratamento e acompanhamento especializado. “Quanto mais cedo a lipodistrofia for identificada, maiores as chances de evitar complicações graves e melhorar a qualidade de vida dos pacientes”, finaliza Montenegro.
Lipodistrofia e aplicação de insulina
Quem convive com diabetes e faz uso de insulina provavelmente já esbarrou nesse termo no consultório médico: “faça o rodízio dos locais de aplicação para evitar a lipodistrofia”. Isso porque, quando a insulina é aplicada repetidamente no mesmo ponto, pode provocar o endurecimento e a degeneração do tecido adiposo.
Esse processo leva ao surgimento de uma lipodistrofia localizada, uma alteração relativamente comum, mas que pode comprometer a absorção da insulina e dificultar o controle glicêmico. A lipodistrofia localizada não é a mesma que as formas genéticas ou adquiridas mais graves, mas também merece atenção. O rodízio correto dos locais de aplicação é a principal forma de prevenção.
Orientação prática: varie entre diferentes áreas do corpo, como abdômen, coxas, braços e glúteos, seguindo sempre a recomendação do seu profissional de saúde.
28 de maio de 2025
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