Olhar da Saúde 2025-Thumbs-Urina escura e anemia

Urina escura e anemia: você já ouviu falar de hemoglobinúria paroxística noturna?

Com manifestações que limitam a autonomia dos pacientes, essa condição sanguínea é causada por uma mutação genética e apresenta desafios no diagnóstico e no acesso ao tratamento

Anemia, risco aumentado de trombose e danos a diferentes órgãos podem ser consequência de uma doença rara e por isso mesmo pouco conhecida e de diagnóstico difícil – as estimativas apontam cerca de 1,3 novo caso de hemoglobinúria paroxística noturna (HPN) por milhão de pessoas. Com impactos significativos na qualidade de vida dos pacientes, ela é progressiva e tem origem em uma mutação genética que interfere na produção sanguínea.

Para entender mais sobre a complexidade dessa doença, que vem ganhando novas terapias nos últimos anos, buscamos o conhecimento do hematologista Rodolfo Cançado, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, que nos abasteceu com informações sobre sinais e sintomas, diagnóstico e avanços no tratamento. 

O que é HPN? Ela é hereditária?

Essa condição ultrarrara, de origem genética, não é hereditária. Em outras palavras, a mutação no gene responsável pelo seu desenvolvimento não é transmitida de uma geração a outra. Trata-se de uma doença adquirida que em geral se manifesta entre os 30 e os 50 anos de idade. Tudo acontece a partir de uma anormalidade das células-tronco hematopoiéticas, envolvidas na fabricação das células sanguíneas na medula óssea – dos glóbulos vermelhos ou hemácias, que transportam oxigênio, dos glóbulos brancos ou leucócitos, que têm papel importante no sistema imunológico, e das plaquetas, cruciais na coagulação do sangue. 

Em razão da alteração em um gene chamado PIGA, as hemácias são produzidas sem determinadas proteínas protetoras. Por isso, se tornam suscetíveis a ataque do sistema complemento, que normalmente protege o organismo de infecções, mas nessa circunstância destrói os glóbulos vermelhos na circulação. Esse processo contínuo recebe o nome de hemólise intravascular, ou seja, acontece dentro dos vasos, dando origem à chamada anemia hemolítica. Também as plaquetas são afetadas, aumentando o risco de formação de coágulos e trombose, uma das temidas consequências da HPN e que pode ocorrer nas pernas, nos pulmões, na veia supra-hepática, localizada acima do fígado, e na mesentérica, importante vaso do abdômen. Outras complicações registradas da HPN são insuficiência renal, hipertensão pulmonar e, nos homens, disfunção erétil.

Quando desconfiar da possibilidade da doença? Quais os sintomas principais?

Com a destruição ou hemólise dos glóbulos vermelhos, a escassez de aporte de oxigênio nas células leva ao aparecimento da anemia e suas consequências. Surgem então sinais e sintomas como fadiga constante, dor de cabeça, desconforto abdominal, espasmos musculares, tontura e dificuldade de concentração. Outra característica é a urina escura, cujo nome técnico é hemoglobinúria. No passado se acreditava que a doença se manifestava somente durante a noite, porque com o xixi mais concentrado de manhã a cor se torna mais intensa. Isso explica a denominação hemoglobinúria paroxística noturna. Mas hoje se sabe que a eliminação das hemácias ocorre continuamente ao longo do dia. A mudança na cor da urina assusta os pacientes, e a recorrência de transfusões de sangue, que passa a ser a realidade para muitos deles, colabora para gerar desgaste físico e emocional e abalar a qualidade de vida.

Por que o diagnóstico costuma demorar?

As manifestações inespecíficas que podem ser confundidas com as de outras doenças e a raridade da HPN estão por trás da dificuldade na sua detecção. Em média, a partir do início dos sintomas, a pessoa só obtém o diagnóstico dois anos depois. E, em 40% dos casos, passa por mais de cinco especialidades – clínico geral, neurologista, hepatologista, pneumologista, gastroenterologista… –, até saber a razão de seus problemas. Quando se levanta a suspeita de HPN, o médico pede testes laboratoriais para investigar anemia e hemólise. A confirmação é feita por um exame chamado citometria de fluxo, que analisa características físicas das células sanguíneas, como contagem, tamanho e forma.

A HPN tem tratamento? 

Tem, sim. E mais de uma opção, embora nem todas ainda de fácil acesso. O médico indicado para fazer o diagnóstico, propor o tratamento e acompanhar o caso é o hematologista.

O plano terapêutico envolve o uso de inibidores de C5, que atuam para prevenir o ataque às células sanguíneas e a destruição dos glóbulos vermelhos. As alternativas hoje no mercado se diferenciam em quesitos como frequência de administração e forma de aplicação (na veia, subcutânea ou oral), e a escolha de que caminho seguir deve levar em conta tanto as condições clínicas quanto as preferências individuais. 

Um dos medicamentos nessa linha, o eculizumabe, foi o primeiro a ser aprovado para uso por aqui, em 2007, e é oferecido pelo Serviço Único de Saúde (SUS). Exige aplicação na veia quinzenalmente, feita necessariamente em uma unidade de saúde. Ele controla a hemólise intravascular e reduz a necessidade de transfusões. Entre suas desvantagens, além das constantes idas e vindas para a administração, ele pode causar hemólise extravascular, aquela que acontece fora dos vasos, em geral no fígado e no baço. 

O ravulizumabe, por sua vez, também requer infusão intravenosa, mas tem longa duração e por isso é aplicado a cada dois meses. Por outro lado, ainda espera para ser incorporado ao SUS. 

Em 2025, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou mais dois fármacos para HPN. O crovalimabe, de uso mensal, tem como principal diferencial a via subcutânea de aplicação, possibilitando que o tratamento seja feito em casa após uma primeira dose na veia. Já o iptacopana é uma terapia oral igualmente eficaz no controle da anemia, acrescentando também o fator conveniência aos seus benefícios. O laboratório responsável por seu desenvolvimento, Novartis, deve entrar com o pedido de incorporação do remédio ao SUS ainda em 2025. 

Existe outro medicamento em comprimido aprovado no país, o danicopana. Combinado com o eculizumabe ou o ravulizumabe, é um recurso para tratar anemia persistente gerada pela hemólise extravascular comum ao uso desses dois fármacos.

Remédios complementares e vacinação

Os avanços no tratamento de hemoglobinúria paroxística noturna são promissores, com surgimento de terapias de longa duração e formas mais práticas de administração. Entretanto, como estamos falando de medicamentos de alto custo, ainda se enfrentam obstáculos de acesso, tanto na esfera pública, no processo de incorporação e disponibilização pelo SUS, quanto por dificuldades de cobertura por parte dos planos de saúde.

Rodolfo Cançado aponta ainda outros pontos relevantes no que diz respeito ao plano terapêutico da HPN. Um deles é a necessidade de vacinação dos pacientes contra meningococos, pneumococos e influenza tipo B, assim como o uso de antibióticos profiláticos, uma vez que os inibidores de complemento aumentam o risco de infecções. O acompanhamento regular é imprescindível também para avaliar a necessidade de incluir anticoagulantes no esquema, a fim de prevenir tromboses. A abordagem da HPN, portanto, deve ser personalizada e demanda monitoramento constante para fazer ajustes finos em prol da qualidade de vida do paciente.

Por Goretti Tenorio,

Olhar da Saúde-Goretti Tenorio

Goretti Tenorio

Jornalista pela ECA-USP, desde 2010 escreve sobre saúde para diferentes veículos.

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