Você já ouviu falar em transplante de intestino?
Essa complexa cirurgia muitas vezes é a única saída para restituir a qualidade de vida de quem perdeu boa parte do órgão
Com extensão entre 5 e 7 metros, o intestino delgado é a porção mais longa do trato intestinal, responsável pela digestão, metabolizando os nutrientes dos alimentos. Isso sem contar seu importante papel no sistema imunológico. Não à toa, quando ele não funciona direito, o corpo todo padece, com quadros de dor abdominal, diarreia, vômitos, fraqueza…
Para algumas pessoas, os abalos no intestino são tão graves que o órgão se torna incapaz de realizar qualquer função. Nesses casos, a solução é substituí-lo por outro por meio de um transplante.
“Não se trata de uma cirurgia comum. No Brasil foram poucas as realizadas e só agora começamos a criar uma rotina desse procedimento por aqui”, relata o cirurgião André Ibrahim David, coordenador da Comissão de Transplante de Intestino da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO). Para se ter uma ideia, de acordo com Registro Brasileiro de Transplantes, essa intervenção foi feita oito vezes no país desde 2015.
Quando o transplante é indicado?
André Ibrahim responde que existem dois cenários em que o procedimento é utilizado, o pediátrico e o de adulto. Em ambos, em geral, os pacientes apresentam problemas que evoluem para a síndrome do intestino curto, na qual, por diferentes razões, perderam boa parte do órgão e, para sobreviver, passam a necessitar de alimentação parenteral, feita por um cateter na veia.
“Na pediatria, isso costuma acontecer em crianças que nasceram prematuras, com o intestino ainda imaturo, o que pode desencadear complicações como a enterocolite necrosante”, exemplifica o médico. Esse quadro inflamatório muitas vezes exige sucessivas cirurgias de retirada de partes do intestino.
Outras doenças congênitas com potencial de levar ao mesmo desfecho nos pequenos são gastrosquise, em que a parede do abdômen não se fecha e o intestino fica para fora, ou volvo, condição em que o órgão sofre uma torção, causando a interrupção de fluxo sanguíneo para a área.
Já entre os adultos, uma das causas de falência intestinal é a trombose mesentérica, obstrução que bloqueia o fluxo sanguíneo no intestino. “Outra origem possível é a doença de Crohn, síndrome inflamatória que pode acometer desde a boca até o ânus, com potencial para destruir toda a parede do intestino”, observa André Ibrahim David.
Nas situações em que as ressecções resultam em perdas expressivas do intestino delgado, a saída é recorrer à colocação de cateter em vasos importantes para que a pessoa seja alimentada com uma fórmula especial – como as jugulares, no pescoço; as subclávias, abaixo da clavícula; ou as ilíacas, na região pélvica.
“O risco, nesses casos, é a ocorrência de inflamações e infecções que inviabilizam o uso dessas vias. Por isso, diante da recorrência de infecções graves ou perda de metade desses acessos, há o alerta da necessidade de transplante do intestino”, descreve o cirurgião.
Mas é possível transplantar só uma parte do órgão?
Na maioria das vezes a cirurgia substitui todo o intestino. Para isso, é preciso que haja um doador com compatibilidade sanguínea e morte cerebral constatada. André Ibrahim lembra, porém, que em 2019, num procedimento inédito no país, o Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, realizou a transferência de um pedaço de intestino delgado de uma mulher para sua filha de 3 anos. A criança viveu cerca de 100 dias, morrendo em decorrência de um linfoma, um tipo de câncer do sistema imunológico que é uma das complicações desse tipo de procedimento.
Outro perigo que ronda a cirurgia é a rejeição do órgão implantado. “O intestino, por ter vários linfonodos, as chamadas organelas de defesa, é muito predisposto a provocar rejeição, exigindo por isso imunossupressão intensa”, explica o médico da ABTO.
André Ibrahim David conta que as primeiras tentativas de transplante de intestino aconteceram na década de 1960, feitas pelo cirurgião Masayuki Okumura, no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. “Mas na época não havia imunossupressores para evitar a rejeição. Em meados dos anos 1980, com o surgimento da ciclosporina, primeiro remédio eficiente contra essa ameaça, houve um avanço dos transplantes em geral”, diz.
Como é a vida pós-cirurgia?
Superados os desafios iniciais, a recuperação pós-transplante varia de acordo com as condições do paciente. “Em média, em uma semana ele começa a comer. Em duas, já está estabilizado. Muitas vezes permanece um período internado para checar por meio de endoscopias se não há sinais de rejeição. A alta se dá entre três e quatro semanas, com retornos regulares ao ambulatório para exames”, relata André Ibrahim.
O acompanhamento por equipe multidisciplinar é crucial para o sucesso da cirurgia, sobretudo com a participação de nutrólogo para recomendações nutricionais.
O cirurgião lembra ainda que está sendo construído no Brasil um programa sólido de atenção a pessoas com falência intestinal. “Mas ainda precisamos capacitar mais médicos para realizar transplantes de intestino”, destaca. “E, além de incentivar a doação de órgãos, também é preciso garantir estrutura, cuidados e atenção na manutenção dos doadores nas UTIs para que sejam viáveis para o procedimento”, completa.
17 de outubro de 2024
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