Esclerose múltipla: juntos por diagnóstico precoce e qualidade de vida
A cor laranja sinaliza que 30 de agosto é o dia de conscientização sobre essa doença crônica e progressiva. Consultamos um especialista sobre sintomas, fatores de risco e a importância de identificar cedo essa condição
Todo ano, desde 2006, a campanha Agosto Laranja busca dar visibilidade a uma condição ainda pouco conhecida, como forma de colaborar com o diagnóstico precoce. “Reconhecer os sinais da esclerose múltipla o quanto antes é fundamental para ajudar na jornada dos pacientes, que em geral é longa pela falta de conhecimento não apenas da população, mas também de profissionais de saúde de diferentes áreas”, diz o neurologista André de Queiroz, do Centro de Esclerose Múltipla do Hospital Israelita Albert Einstein.
Muitas vezes a pessoa percebe uma alteração na sensibilidade de perna e por isso procura um ortopedista. Se o sintoma é visual, vai a um oftalmologista. Quando a queixa é uma vertigem, a tendência é buscar o parecer de um otorrinolaringologista. Se nessa trajetória ninguém levantar a suspeita de ser uma condição neurológica a causa dos problemas, o paciente acaba demorando muito a obter o diagnóstico e, com isso, atrasando o tratamento.
Mas o que é a esclerose múltipla e por que os sintomas são tão variados e por vezes inespecíficos? “Estamos falando de uma doença neurológica autoimune, ou seja, ela acontece porque o sistema imunológico perdeu a capacidade de tolerar as células do próprio corpo e passa a atacá-las. No caso da esclerose múltipla, o alvo é a bainha que recobre os neurônios”, explica o médico. “Toda função neurológica precisa ser traduzida de forma elétrica, e essa informação passa por um fio condutor, que é o neurônio, a célula fundamental do sistema nervoso. Para passar de forma rápida, coerente e eficaz, o sistema é encapado por uma proteína chamada mielina”, continua.
Como todos os neurônios do sistema nervoso são recobertos pela bainha de mielina, o ataque provoca inflamações que prejudicam a comunicação do cérebro com todo o corpo e geram uma ampla gama de sintomas, de acordo com as áreas afetadas. Embaçamento da visão, perda de força muscular, cansaço, formigamento e dormência em braços e pernas, dores nas articulações e alterações cognitivas entram nessa lista.
As repercussões da esclerose múltipla são intercaladas por períodos de surtos, com piora dos sintomas, e fases de estabilização. “Entre 85 e 90% dos pacientes abrem o quadro em surto, uma inflamação aguda que gera um sintoma novo em curto período. A pessoa estava bem e, subitamente, começa a ter uma perda visual, por exemplo”, descreve André de Queiroz. “Mas o que torna a doença ainda mais complexa é que em 10 a 15% dos casos pode ocorrer uma inflamação não focal, mais difusa no cérebro, independente do surto. A pessoa vai piorando, vai ficando mais lenta para andar ou acentuando uma alteração cognitiva. É a chamada forma primariamente progressiva da esclerose múltipla”, completa.
Quais são as causas da esclerose múltipla?
“Não se sabe ao certo. Existe uma predisposição genética que faz com que o sistema imunológico se torne hiper-reativo, exagerado, gerando a perda de tolerância com a mielina”, diz o especialista. Essa predisposição, combinada com os chamados fatores ambientais, dá origem à doença. Um dos mecanismos conhecidos é a infecção pelo vírus Epstein-Barr. Outras associações conhecidas são o tabagismo e a baixa exposição solar e a consequente deficiência de vitamina D.
Considerando que alguns desses fatores são modificáveis, dá para falar em prevenção?
“Mudanças comportamentais ajudam a reduzir o risco. Se, por exemplo, há casos de qualquer doença autoimune na família, é prudente se manter longe do cigarro, aderir a hábitos mais saudáveis, manter uma boa dosagem de vitamina D”, responde André de Queiroz.
Quando levantar a suspeita da doença?
“Como já falamos, os sintomas são muito variados, mas os mais comuns dão o alerta. Um deles é perda visual em um único olho. Então, numa mulher jovem, população na qual a doença é mais prevalente, a neurite óptica, uma turvação, um embaçamento, é uma hipótese diagnóstica de esclerose múltipla”, esclarece. Os sinais sensitivos também, como formigamento na perna, perda de sensibilidade em uma parte do corpo ou em um único membro. Outro indício é um quadro de dor muito intensa na face, a neuralgia do trigêmeo. Também é preciso desconfiar diante de perda de força e de vertigem.
Como é feito o diagnóstico?
“O exame principal é a ressonância magnética mostrando lesões sugestivas de uma doença desmielinizante, de uma inflamação da mielina no cérebro ou na medula. Esse é sem dúvida o pontapé inicial”, ressalta o médico. Examinar o liquor, o fluido da medula espinhal, também ajuda, porque permite detectar algum processo inflamatório compatível com a doença.
Por que faz diferença diagnosticar o quanto antes?
“Embora não se possa falar em cura, é possível oferecer mais qualidade de vida para o paciente. Na esclerose múltipla, quando se inicia o tratamento precocemente, estamos mudando como a pessoa vai estar daqui a 10, 15 anos. Se um paciente tem três surtos, ele tem três lesões no cérebro, um cenário melhor do que o daquele com 20 lesões. Menos surtos, menos áreas atingidas e, portanto, menos déficits neurológicos. Ou seja, agir logo não só evita o acúmulo de lesões, como reduz o grau de incapacidade futura.”
E como é feito o tratamento?
“Nos momentos de surto, em geral se usa a pulsoterapia, a administração de altas doses de corticoide na veia”, conta André de Queiroz. Caso o quadro seja muito grave, a ponto de não responder a essa medicação, é possível lançar mão da plasmaférese. Nessa terapia, uma máquina faz uma filtração do plasma sanguíneo, retirando a substâncias inflamatórias. “Já o manejo para evitar novos surtos, ou seja, para controlar a doença, é feito com medicamentos imunossupressores, que aplacam o influxo de células hiper-reativas”, aponta. Hoje se conta também com os anticorpos monoclonais, drogas que agem só em células específicas, reduzindo os efeitos colaterais. “Uma questão nesse sentido é que o PCDT [Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas] para esclerose múltipla ainda determina que se sigam algumas etapas. O indivíduo que acaba de ser diagnosticado usa primeiro o tratamento mais básico, nem sempre eficaz para o seu caso. Se desde o início o quadro já é muito grave, não faz sentido indicar uma medicação de baixa eficácia. É preciso quebrar essa barreira, individualizar o tratamento. Os pacientes com esclerose múltipla não são iguais”, argumenta.
Quais são as perspectivas futuras nos cuidados de esclerose múltipla?
“Em termos de diagnóstico, cada vez mais contamos com ressonâncias mais modernas, que conseguem mostrar não apenas as lesões, mas indicar se elas estão próximas a um vaso, que é uma característica da esclerose múltipla e por isso não deixa dúvida no diagnóstico”, diz. Segundo o expert, alguns aparelhos conseguem fazer um mapa de mielina, mostrando exatamente as áreas desmielinizadas. Além disso, surgem novos exames com biomarcadores de sangue, como o neurofilamento de cadeias leves, que mostra a atividade da doença e ajuda a acompanhar a progressão. “E em breve deve ser publicada uma revisão dos critérios McDonald de diagnóstico de esclerose múltipla, com indicação de dosar cadeias leves kappa no liquor, para apontar paciente com um prognóstico pior da doença”, complementa.
E o que esperar no âmbito do tratamento?
Na visão de André de Queiroz, a esclerose múltipla é uma das doenças com mais ofertas de novos tratamentos nos últimos anos. E a perspectiva é de surgirem novos, com mecanismos de ação diferentes. “A maior perspectiva é a de terapias que tragam impacto também para a progressão da doença, que ainda é um calcanhar de aquiles. E, ainda sem grandes resultados, mas como uma expectativa futura, estão em andamento muitas pesquisas que buscam opções para possibilitar ao paciente retornar ao ponto em que estava antes dos surtos, quer dizer, se ele perdeu a sensibilidade, a força, que isso possa ser revertido”, conclui André de Queiroz.
21 de agosto de 2025
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